quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Mayara Petruso e um Nordeste que não conheço

“Para não aceder à humanidade, as
pessoas se atiram nas profundezas sombrias
da doutrina zoológica que é o racismo.”
Franz Kafka

por Raphael Douglas – Vou citar uma expressão das ruas que ouvi ontem quando um amigo leu as ultimas manifestações pós-eleição no twitter. Perdoem-me a citação. Disse: “Se filho da puta voasse, seria impossível ver o céu no Brasil.” O proferiu sem muita eloqüência, mas quis dizer que não acredita que toda a população nacional tenha ideias como as que veremos abaixo, afinal, restariam pessoas coladas ao chão tentando observar o azul do céu obnubilado pelo preconceito. Concordo com ele. É óbvio que existem muitos indivíduos que pouco se importam com as diferenças regionais, de sotaque ou mesmo da renda per capita da cidade onde se vive.

A moça em questão responsabiliza categoricamente o Nordeste pela vitória de Dilma Rousseff. Todavia, como afirma a redação da Rádio Criciúma, “as postagens dos internautas responsabilizando o Nordeste pela vitória petista, mostram seu desconhecimento dos números da eleição, já que se o Nordeste fosse excluído dos cálculos, Dilma ainda venceria Serra, com uma diferença de cerca de 1,3 milhão de votos.” O fato de buscar a desalienação das informações rasas é um bom exercício ao espírito. Não tiraria nunca como informação universal que todos os paulistanos exercem a conduta da senhorita Mayara Petruso. Aliás, os paulistanos que conheço são gente de caráter altivo e admirável. A amizade e a admiração transcendem qualquer diferença, aproxima pessoas. A pétrida Petruso já pediu desculpas. Mas a pedra que ela atira é apenas mais uma que ajuda a erguer a montanha da infâmia. Pedir desculpas não resolve fundamentalmente a questão que existe muito antes do twitter nascer.

Quando eu adquiri consciência, ou seja, quando obtive as primeiras percepções de mim mesmo, me foi dito que eu era homem, brasileiro e nordestino. Quando pequeno, o juízo de valor estava distante então não entendia o que o último predicado queria dizer. Pois bem, o sucesso negativo, mais uma vez, nas redes sociais é o tratamento de um ente que sinceramente não conheço. Chama-se: Nordeste. E o pior, dizem que é onde eu vivo. Há anos me amotino e me questiono se não sou esquizofrênico. Penso em procurar ajuda especializada, pois creio estar projetando ao meu redor um mundo que não corresponde ao que ele é de fato. Pois, quando acordo de manhã e falo com meu vizinho, ele não passa fome, aliás, pelo que vejo de suas posses materiais, nem ele e nem sua geração futura passarão. Saio à rua e dou bom dia ao segurança da esquina. É nordestino, trabalha como segurança (no Nordeste) e tem um grau de alfabetização relativamente sofisticado. Todos no Nordeste são alfabetizados? Não, eu sei. Mas o segurança sabe mais dos presidentes da república que passaram pelo Brasil do que eu. Vou trabalhar: dou aulas para um monte de nordestininhos. Não são ignorantes e não passam fome. Aliás, pelo que vejo, não passarão. Nenhum deles faz uso das bolsas assistencialistas atuais. Os donos da escola são nordestinos especialistas em técnicas pedagógicas voltadas ao desenvolvimento de futuros profissionais nordestinos (e não só para o Nordeste).

No dia 31 de outubro de 2010, fui, como qualquer nordestino ou brasileiro, exercer meus deveres de cidadão. Presenciei vários eleitores de Dilma Rousseff, eleita devido a popularidade de um Nordestino, que não chegavam montados em jumentos ou usavam chapeuzinho de couro. Vinham em ônibus bem conservados, em carros novos, alguns até muito caros e suntuosos. Pude observar também um bom número de serristas, que por sinal, na cidade em que moro, ainda que não sejam a maioria, têm muito gosto de votar em José Serra e seu partido. Serra é muito respeitado entre os ricos e super ricos. O curioso é que os super ricos nasceram aqui. Falam PRÉSIDENTI E ÉLÉIÇÃO. Nordestinos são entes submetidos às leis e possuem escolhas livres, logo, são seres humanos. Sendo assim, é possível que votem ou não em Serra ou em quem quer que seja.

Pois bem. Votei e fui comer numa multinacional insuportavelmente lotada de nordestinos. Não passavam fome, mas ao contrário pagavam 32 reais num simples Big Apple. Então quer dizer que o Nordeste, na visão de quem escreve agora, é a maravilha do mundo? Calma. Ao sair da multinacional, passando por um viaduto, construído por nordestinos e para nordestinos (e visitantes) circularem pela cidade, observei que a favela de sempre está lá: cheia de nordestinos e eles não estão bem. Sofrem com violência e abandono do governo. Assim como há “Brasis”, há nordestes. Assim como no Nordeste há dinheiro, há a completa ausência dele.

Mas caminhemos. O que me assusta é a maneira como chega a ideia de Nordeste fora do Nordeste. Parece haver um Nordeste medieval sendo citado nas mídias. Chão rachado, ausência de água e recursos simples. É como se o lugar, na sua totalidade, vivesse apenas mendigando commodities. E o esquizofrênico que vos fala, sempre que vê o Nordeste, descobre oportunidades profissionais, olha pela janela de casa e enxerga arranha-céus, bairros tradicionais, parques públicos bem arborizados e saudáveis, classe média, baixa e pessoas sem oportunidade, esquecidas pelo governo que é formado, também, por nordestinos. Como em qualquer lugar do Brasil, no Nordeste há a pitoresca convivência do medieval com o moderno e tecnológico, do paupérrimo com o fetiche do luxo. Brasil que nada mais é do que mais um país da subdesenvolvida América Latina. Paulistanos, Gaúchos, Cariocas, Paraenses, Baianos, Capixabas, Potiguares, entre outros, participam de um mesmo predicado: brasileiro.

E de quem é a responsabilidade da imagem desse tal Nordeste paralelo? Primeiro, e sem dúvida, dos políticos nordestinos. Mas por quê? Simples, A indústria da seca! Seca essa que só vi umas duas vezes na vida. Essa indústria enche os bolsos dos políticos tortuosos. Ela existe, é óbvio e além de óbvio é triste. Coisas da facticidade. Mas, por Deus! Há água no lençol freático dos sertões! Por que não gastar milhões e fazer a água emergir? Não interessa aos “coronéis”. É muito mais oneroso tratar a favelização, do que a manutenção do povo em sua terra natal. Como diria Aristóteles, bem antes dos geneticistas, um erro no início, acarreta um erro ainda maior no final.

A culpa não é expressamente da mídia, ainda que seja ela a responsável por vincular imagens e estereótipos. Chega desse escandalozinho contra a afundação (sic) Roberto Marinho, como se ela fosse réu todo o tempo. E olhe que não vejo essa rede de TV há anos, não aprovo seus métodos e filosofia. Enfim, uma coisa importante é começar a trabalhar fenomenologicamente o conceito de nordestino. Os humanos que vivem amontoados nas periferias do Rio e de São Paulo não são o conceito universal de nordestino. Eles têm em si certos predicados essenciais. Mas não vivem mais no Nordeste, assumiram o ethos de outro lugar. Quando a Petruso pede que se afogue um nordestino, ela o pede em favor de São Paulo. Mas São Paulo não é Nordeste. Pelo que sei, a cidade supracitada abriga um monte de gente que no Nordeste não teve chance alguma. Fiquei extremamente ofendido numa das viagens que fiz e não fui considerado aparentemente um ente nordestino. Motivo alegado? Sendo bem direto e sem falso moralismo: sou branco, cara de europeu (libanês, árabe ou judeu, foi o que ouvi), tenho 1,87 cm de altura, não passo fome, estava fazendo turismo e gastando dinheiro. Essa é a evidência, a informação positiva. Logo, deve haver o conceito negativo e esse tem sido tomado erroneamente como fator universal. Achei absurdo o desconhecimento histórico. A genética de onde venho obviamente é portuguesa, com despejos genéticos holandeses, da forte presença negra, indígena, árabe, devido ao passado da união ibérica, em suma, mestiça por inteiro: que belo! E não sou 1% menos nordestino por isso.

Então vamos lá. Conceito obtido por negação. Ser nordestino é: passar fome, não ser branco, ter uma altura inferior a 1,65 cm e ter inscrito na genética da existência que a migração é o fator necessário para melhorar de vida. Sejamos honestos. Esse papo furado de região inferior é uma balela. No Nordeste existem psicopatas, estelionatários, doleiros, criminosos, colarinho branco e, também, muito preconceito reverso. Discurso de etnia oprimida, além de versar sobre algo que não existe, não justifica ações como essa:

Observaram? Nordestinos também são preconceituosos. É um déficit ontológico. Atinge qualquer um. Longe, muito longe de ser um lugar perfeito, o Nordeste e suas capitais nada mais são do que megapixels na pobre América latina. Tristes trópicos! Diria o mais recente intelectual finado. No fim das contas somos todos iguais quando vistos desde fora. Para um norte-americano médio, por exemplo, não somos muito diferentes dos nossos vizinhos, ou seja, a “nata do lixo”. São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Buenos Aires, Santiago, La Paz, Bogotá, San José, San Salvador, Cidade da Guatemala, Montevidéu, Caracas, Manágua, Tegucigalpa, Panamá, Assunção, Lima, entre outras, são America Latina e ponto. Deste ponto de vista, não parecem ridículas essas refregas regionais? O que falta para o Brasil se conhecer autenticamente? Até onde é possível perdoar a ignorância, aliás, a desinformação? Como iniciar um projeto de veiculação da imagem das vidas reais nas cidades brasileiras? A quem interessa que o raso e o superficial continuem pedagogizando nossa ideia de Brasil?

A companheira Mayara certamente agiu emotivamente devido à força da história. Presenciou seu candidato em derrocada. Mas é aí que conhecemos os homens cautos e os desmedidos, os racionais e os estomacais. Na emoção, ela honestamente transcendeu a hipocrisia e vomitou as substâncias que permeiam seu organismo. É uma preconceituosa. Ricardo Timm, grande pensador nacional, diz que “o preconceituoso é a mais precária das criaturas: qualquer um, qualquer salafrário inteligente, qualquer ideologia delirante, faz dele uso e abuso. Sonhando a vida inteira em não ser mais do que lixo, o preconceituoso se realiza quando é transformado efetivamente em lixo para a combustão da exploração e violência contra o outro. Essa é sua única festa, a única a que se permite; não ser, no fundo, nada, é seu sonho mais recôndito, e habitar uma região onde a esperança possa alcançá-lo é sua concepção de porto seguro. Morto-vivo, capitulou diante do mundo; fugiu da história para não ter de entender nem ao menos sua própria história. A atitude preconceituosa é a negação da inteligência, ou, o que dá no mesmo, a negação da abertura ao outro.”

Preconceituoso é aquele que discrimina. Normalmente, quando nos deparamos com o desconhecido, ou com o parcialmente conhecido, cometemos generalizações apressadas, induzimos inadvertidamente. Sim, é um movimento natural do intelecto mover-se por concepções prévias. Mas, como eu disse em outro texto, é inteligente notar que existe uma diferença abissal entre pré-conceito e discriminação. Toda indução é abusiva e toda dedução, incerta. Há uma ideia de Nordeste obscurecendo o que é o Nordeste Real. Não façamos isso com o Nordeste, não façamos isso com o Brasil.

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a primeira imagem foi retirada do blog de Renato Rovai


Fonte: Amálgama

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